Polícia Vegana – disputa de narrativas e coerência da prática vegana

Sobre proteínas, B12 e agrotóxicos: hipocrisia e essencialismo nos debates  vegetarianismo x carnismo | by Kae tê | antropoloko-alado | Medium
“Polícia vegana” da série de quadrinhos Scott Pilgrim

Antes de mais nada, esta não será uma postagem sobre as forças policiais. Vamos falar sobre o termo bastante utilizado por determinados grupos dentro do veganismo, a famosa expressão “Polícia Vegana”.

Essa expressão é fortemente usada em discussões quando se abordam temas como as conexões do veganismo com outras lutas contra a opressão, a exploração e a destruição da natureza ou quando o assunto é se o novo produto da empresa que lucra com a morte de animais (além da exploração da classe trabalhadora e a destruição e devastação ambiental, e subsequente morte de diversos animais e até espécies inteiras) é ou não é “vegano”.

Quando esses debates ocorrem, as pessoas que defendem um veganismo liberal (vulgo estratégico, pragmático, de mercado e capitalista) usam a expressão para dizer que quem defende um veganismo popular, político e interseccional está “querendo caçar a carteirinha de veganes” ou que “está dividindo o movimento, deixando os animais em segundo plano”. Em suma, o argumento geral acaba sendo algo como “a polícia vegana veio ditar o que é ou não vegano pra caçar a sua carteirinha de membro”.)

Essas justificativas são espantalhos, ou seja, estereótipos falsos para tentar inviabilizar uma construção crítica no veganismo realmente em prol dos animais. 

Fazem isso porque, mesmo que possam se comover com a exploração animal, não estão dispostas a repensar sobre suas crenças políticas e como o sistema capitalista que defendem jamais possibilitaria a libertação animal. Por conta disso, reproduzem essas falácias que estamos discutindo aqui. Essas pessoas querem fazer algo para não se sentirem como contribuintes da exploração animal, mas não aceitam que o modelo de sociedade defendido por elas é uma das maiores causas da exploração animal massificada. 

 
  • Mas por que são falsas justificativas?

A defesa de um veganismo popular, político e interseccional não surge porque “algumas pessoas veganas estão querendo unir essas lutas por acharem legal”, ela começa a partir do entendimento crítico de como a nossa sociedade, capitalista, funciona. Portanto, elas não juntam as lutas, mas sim compreendem como essas lutas já estão conectadas pelas mesmas estruturas de poder e opressões, estruturas essas que se alimentam umas às outras.

Veganismo deve ser sobre os animais não humanos, sobre o fim da exploração animal, sobre a Libertação Animal. Para isso, nós precisamos entender como surge, como se sustenta e como superar toda essa estrutura de exploração animal.

 
  • Será que o veganismo liberal realmente consegue explicar os bases da exploração animal ou só consegue descrever a exploração animal? 

Toda pessoa que decide virar vegana provavelmente já entrou em contato com documentários, livros ou artigos que revelam a crueldade animal por trás dos alimentos consumidos por uma parte da população. 

O veganismo liberal, apesar de compreender que os animais são oprimidos em nossa sociedade, não vai muito além de descrever seu funcionamento superficial. Ou seja, não consegue explicar por que os animais são e continuam sendo explorados.

Esse veganismo está focado na oferta de mais produtos plant-based, com ingredientes de origem vegetal, ou seja, está focado no mercado. Para sustentar esse foco, cria narrativas fictícias para dizer que agem assim pelos animais.

Por isso precisam atacar e tentar inviabilizar qualquer debate ou construção crítica dentro do veganismo que seja de fato focada na Libertação Animal, afinal, no capitalismo o lucro está sempre acima de tudo, da vida e até da possibilidade dela continuar existindo.

 
  • Mas os produtos são ou não são veganos?

Aqui entra um ponto muito importante em todo esse debate: o consumo. Na socialização capitalista tudo vira mercadoria e interagimos com tudo, inclusive entre nós, por meio do consumo.

A pergunta já parte do pressuposto que veganismo é sobre consumo, sendo assim, por meio dele conseguiríamos alguma mudança dentro da sociedade especista. Essa, inclusive, é uma das principais narrativas que o veganismo liberal propaga desonestamente.

É importante nós refletirmos, a partir de uma análise histórica da materialidade dos fatos, quando que uma modificação transformadora aconteceu através do consumo simplesmente, e buscar referência nos eventos e metodologias que realmente foram capaz desse feito, sempre a partir de uma lente crítica para não cair em anacronismos.

Para agir com o objetivo de superar a exploração animal e construir as condições da libertação animal precisamos falar mais em Produção do que em Consumo dentro do Veganismo. Precisamos entender como podemos transformar o modo de produção a fim de possibilitar a libertação animal e a construção de uma soberania alimentar baseada numa alimentação vegetal de qualidade que não destrua nossa saúde nem a terra.

 
  • Qual a importância do modo de produção na Libertação Animal?

A produção é importante porque é a partir dela que a nossa sociedade se estrutura. Uma das características de nossa produção atual é a exploração em massa dos animais, que também é um dos pilares fundamentais para sustentação e propagação do especismo. Mudar nosso modo de produzir seria possibilitar a mudança em certas estruturas para tornar viável o fim de abatedouros e monoculturas. Também seria possível pautar a autonomia regional na soberania alimentar baseada em vegetais de qualidade e assim em diante. 

Não é uma tarefa fácil, mas já vimos que o fácil (esperar que megaempresas que tiram seus lucros da morte de seres sencientes apenas decidam se tornar “veganas”) não está funcionando. Essas grandes empresas, apesar de terem acrescentado produtos de origem vegetal em sua lista de ofertas, não demonstraram nenhum interesse em abrir mão da exploração animal. 

 
  • Consumo não importa?

A ideia de consumo dentro do veganismo é sobre alinhar nossas motivações político-éticas (de que os animais não deveriam ser explorados) com nossa prática individual (não consumir os frutos da exploração animal). 

Entender nosso consumo e nossas possibilidades de modificá-lo é muito importante sim. O que estamos dizendo é que o consumo tem que deixar a centralidade do debate dentro do veganismo, para dar espaço ao debate sobre a produção, cuja importância já comentamos.

Precisamos construir no agora as relações desse mundo que estamos lutando para criar, em que a Libertação Animal seja uma realidade concretizada. Essa prefiguração¹ de sociedade passa por estabelecermos outras relações de consumo, em alguns casos transformando-as em algo para além do consumo inclusive.

 
  • Então…

Não se permita enganar por palavras e expressões como “estratégico”, “pragmático”, “muito idealista”, “radical demais”, “irrealista”. Deixe esses espantalhos de lado e se pergunte:

      • Como superar a exploração animal?
      • Como construir a libertação animal?

Participe de grupos de estudos, leia, debata, coloque à prova o que você acredita com dados da realidade material, coloque à prova os argumentos das pessoas com quem você está debatendo.

Procure saber como funcionam as feiras da sua cidade (se é que há feiras), de onde vem seu alimento, como ele é produzido, por que certos produtos possuem o preço que têm e quais os interesses políticos em mantê-los inacessíveis.

Procure e conheça quem são os grupos que já estão lutando para que essas realidades sejam transformadas e então veremos quem contribui mais pelo fim da exploração animal: megacorporações que têm um produto de nicho mercadológico com ingredientes ultraprocessados de origem vegetal ou o maior produtor de arroz orgânico da América Latina!


  • Notas:
¹prefiguração: referência ao princípio anarquista da Política Prefigurativa, que pode ser definida como a ideia de que o movimento que luta pela transformação da sociedade precisa estar construído e agir de forma a antecipar, prefigurar, essas formas e meios da nova sociedade desejada.
    • Referência: “Anarquia Viva! Política Antiautoritária da Prática para a Teoria” de Uri Gordon, disponível aqui.

  • Indicações:
  1. Agricultura e veganismo, para além do consumo – Live da UVA (Disponível aqui)
  1. A libertação animal não será comprada – Texto original no Blog Papacapim escrito por Sandra Guimarães (Disponível aqui)
  1. “Veganismo é um ato de solidariedade com animais não-humanos” – Texto original no Blog Papacapim escrito por Sandra Guimarães (Disponível aqui)
  1. Resposta ao vídeo de Fabio Chaves “Boicote: produto VS empresa” – Texto no Veganagente por Robson Fernando de Souza (Disponível aqui)
  1. O que é o veganismo? – Texto no Veganagente por Robson Fernando de Souza (Disponível aqui)