Apelo à moralidade como tática de divulgação do veganismo

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“Moral de rebanho”

A “moral” é um daqueles temas filosóficos que é teorizado e discutido a todo momento. Nietzsche é um que, por exemplo, fazia crítica ao que ele chamava de moral de rebanho: a moral que tinha como objetivo tornar-se universal.

O problema não é a moral em si (se é que isso existe). O próprio Nietzsche coloca que nós pensamos sobre a nossa própria vida, sobre nossos próprios valores através da nossa moral – e que isso faz parte do ser humano. Mas a moral (esse conjunto de valores que temos como “certo” ou “errado”) pode ser algo que venha de encontro com a nossa própria humanidade, que não reprima os nossos instintos, potências e pulsões, que aceite as particularidades da vida real.

Acontece que a moral também pode ser algo que separa a noção de “certo e errado” da vida concreta e a eleva para o plano ideal: tornando noções particulares ou pertencentes a determinados grupos em conceitos universais. Essa manifestação da “moral” acaba sendo o que chamamos de moralismo. Ele ignora por completo as condições materiais dos indivíduos e traz recomendações generalizadas ao “ser humano”, como se a humanidade fosse uma massa homogênea.

O perigo mora justamente nesse segundo tipo. E todo mundo que já leu alguma coisa sobre colonialismo (um tema muito em pauta nas discussões políticas veganas atualmente) sabe bem do perigo de tentar impor suas próprias visões a outros grupos e, olhando para a história, o grande buraco que essas “regras morais universais” nos meteu e todo o mal que causou.

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O que isso tem a ver com o veganismo?

A partir do momento que se utiliza o apelo à moralidade enquanto tática de divulgação do veganismo, precisa se ter muito cuidado com qual tipo de moralidade nós queremos nos atrelar, e de que forma! Também precisa se ter o cuidado de lidar com esse tema de uma maneira mais complexa (porque é um tema complexo!) e nem sempre a lógica das mídias sociais permite essas discussões – e são as mídias sociais, hoje, o principal veículo de divulgação de quase qualquer assunto, inclusive o veganismo.

É muito fácil usar do moralismo enquanto tática e cair em posturas arrogantes, colonialistas e que abrem pouco espaço para diálogo. E nós bem sabemos da quantidade de páginas veganas que buscam atacar ações e pensamentos individuais em vez de atacar todo o sistema de produção que explora animais, como se a responsabilidade pela exploração animal fosse única e exclusivamente das pessoas que consomem produtos de origem animal.

Esse forte apelo à culpabilização individual derivam da noção liberal dominante de que o indivíduo (ou consumidor/mercadoria) seja a única instância de atuação na sociedade. Por ser absolutamente dominante e difundida em nossa sociedade, a ideologia liberal é representada como o modo “natural de interpretar o mundo”, ou uma não-ideologia, e por isso a culpabilização individual talvez seja a única resposta possível que tais movimentos conseguem transmitir para a opressão especista, ao carecer de uma visão de mundo crítica e histórica que as ideologias anticapitalistas constroem.

Essa culpabilização do indivíduo mascara a realidade: problemas sociais exigem soluções coletivas, não individualizadas. Frases como “se cada um fizer a sua parte, o mundo vai melhorar” estão longe de apontarem uma solução real. “Se você parar de comer carne, estará salvando muitos animais”, infelizmente, é apenas uma falácia idealista. Continuar utilizando esses argumentos não vai contribuir de forma alguma para que consigamos alcançar a libertação animal, pois essa exige uma profunda mudança no nosso sistema de produção e não apenas posições individuais pautadas no consumo.

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“Chega de matar animais”

É claro que, fazendo de forma responsável é possível usar a moralidade de um jeito interessante. Muitas vezes são os argumentos desse tom os que mais sensibilizam ou chamam a atenção das pessoas (afinal, muitas gente já foi “capturada” pelo veganismo por argumentos assim!). É um tema delicado, que pode ser bem construído, se feito com responsabilidade. E é importante que esse apelo moral não seja a única forma de divulgar o movimento!

Além disso, a utilização da moralidade como ferramenta, se transmutada da crítica moral do indivíduo para uma crítica sistemática do sistema capitalista e de seus financiadores, pode ter um fundamental para o processo de conscientização das formas estruturais de opressão que combatemos, para além do círculo anticapitalista.

Sensibilizar as pessoas para a causa animal nunca é uma tarefa fácil, pois é necessário que a pessoa consiga romper com todas correntes ideológicas atreladas ao especismo. Ademais, não basta a pessoa “simpatizar” com a causa – ela precisa abrir mão de certas posturas em sua vida. Finalmente, essas pessoas conseguem perceber que a postura individual delas não é o que vai acabar de imediato com a exploração animal. O “cada um faz a sua parte” começa a deixar de fazer sentido quando se atrela a um certo “descargo de consciência” que na verdade não irá, efetivamente, mudar alguma coisa.

Por que, então, abraçar a causa antiespecista?

Porque ela tem o poder de ser construída coletivamente, e é sobre essa perspectiva que muitos diálogos podem ser estabelecidos. A partir disso, o anseio de “estou fazendo o meu dever e mesmo assim não adianta” pode ser convertido em “estou ajudando a construir as condições para que mudanças reais sejam concretizadas”.

A boa política é aquela que melhor capta os anseios e as demandas sociais, convertendo-as em respostas e propostas de caráter coletivo. Nesse sentido, pode-se apresentar o veganismo como modelo de resposta aos anseios e às demandas sociais reais, como a distribuição dos recursos do trabalho e a gestão da crise ecológica. Daí, sim, partir para propostas locais, para que se conecte o “como” ao “porque” das coisas.

Nós acreditamos que a solução seja, como sempre, local. Talvez o movimento vegano não precise se preocupar tanto em dar definições para si mesmo e para seus diversos conceitos, talvez não seja tão importante assim encontrar uma definição que funcione para todo mundo.

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Já conhece o veganismo da “vida real”?

Existe um passo anterior a esse que é criar espaço para o veganismo no dia a dia das pessoas. As pessoas precisam se relacionar e conhecer o veganismo na vida real, não em textos ou discursos somente.

Não faz sentido algum acreditar que o comportamento das pessoas de “usar ou não produtos oriundos da exploração animal” dependa apenas de vontades ou sentimentos. Utilizar-se da culpa para convencer uma mudança de hábito também cai no idealismo. Se nós quisermos mudanças reais, é necessário que criemos condições para essas mudanças.

A organização política aqui é essencial. Precisamos estar nas feiras, nas lojas, nos projetos comunitários em defesa da libertação animal e da soberania alimentar. Precisamos encontrar nosso caminho na nossa cidade: não “de que forma o veganismo funciona?” mas “de que forma o veganismo funciona aqui?”; não “como podemos veganizar o mundo?” mas “como podemos fazer do veganismo uma opção neste local?”; não “como podemos ajudar as pessoas?” mas “como podemos ajudar essas pessoas?”.

A partir do momento que se ocupa os lugares da cidade e se cria espaço para que as pessoas sejam veganas e convivam com o veganismo, para além do consumo (mas como uma experiência de vida) se cria espaço para que a escolha de ser ou não ser vegano seja uma questão de coerência e luta, e não mais de culpa e moral.

Eu decido aderir ao veganismo porque aquilo passa a fazer sentido na minha vida, não porque alguém me disse sobre o que é certo ou errado. O movimento vegano precisa se aproximar das pessoas e de suas realidades, estar disponível para dialogar e não para convencer. Até porque quando a demonstração é nítida, não há necessidade de convencimento.